Em 2024 foram aplicadas quase 200 multas, a maioria por tráfego irregular de veículos, em áreas proibidas. Especialistas veem risco de erosão acelerada das dunas.
A atriz Gorete Milagres, que se consagrou na TV brasileira com a personagem Filó, gravou uma série de vídeos com aulas de “etiqueta” para turistas que pretendem visitar o Parque Nacional de Jericoacoara, no litoral cearense.
“Quer subir na duna? Passeio a pé? Ok. Passeio a cavalo? Ok. Bicicleta? Ok. Passeio com veículo motorizado? Pode não!”
O vídeo foi feito em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e divulgado ainda em 2022 nas redes sociais da atriz e do instituto.
Naquele ano, o parque registrava um recorde interno: havia aplicado 83 multas a turistas e empresas da região.
De 2022 pra cá, mais multas ainda. No ano passado foram 243. Neste ano, 190 até outubro, superando todas as outras unidades de conservação federais brasileiras (em número de multas, não em valores). O levantamento foi feito pela BBC News Brasil a partir de dados oficiais.
Estão longe, no entanto, de serem as multas mais caras, geralmente aplicadas em casos de impacto em grandes áreas e que envolvem crimes, como desmatamento ilegal, em outras unidades.
Ainda assim, é um número significativo: o valor das multas nos últimos dois anos em Jericoacoara é maior do que todos os anos anteriores no parque somados desde a criação do instituto.
Uma das principais preocupações, segundo biólogos e geógrafos ouvidos pela BBC News Brasil, é com o desaparecimento das características únicas que definem o parque e o seu entorno, especialmente as dunas, que atraem milhões de visitantes.
“Segue o caminho das baliza, preste atenção nas praca (placas). As praca diz procê onde ocê pode e não pode passar. Se a fiscalização pega, ocê vai ganhar uma multa. Oh, coitado!”, diz Filó no material divulgado pelo instituto.
A atriz e empresária, que possui e aluga imóveis de alto padrão na cidade, começou a frequentar Jeri — como o local é conhecido — ainda em 2017, quando foi fazer um filme em Fortaleza.
Ela contou à BBC News Brasil que ficou encantada com a cidade, mas criticou a falta de cuidado com questões ambientais.
“Jeri é uma comunidade que foi organizada pelos moradores e, aos poucos, obteve grandes conquistas, desde o tratamento de água, usina de reciclagem de lixo, a presença do ICMBio. Mas gestões anteriores não prezaram pelo meio ambiente. Espero que o novo prefeito seja mais rigoroso com isso”, disse.
Para ela, no entanto, a região já atingiu o limite e não tem mais para onde crescer.
“O turismo nacional cresceu muito depois do aeroporto, e isso também levou a um progresso meio desenfreado”, citando exemplos como uso o da poluição sonora, com uso indevido de caixas de som, e descarte irregular de lixo.
De vila de pescadores a polo internacional de turismo
A região, que já foi uma pequena vila de pescadores, é hoje um grande polo turístico e um atrativo internacional pela beleza de suas praias, dunas e lagoas.
Criado em fevereiro de 2002, o Parque Nacional de Jericoacoara fica a cerca de 300 km da capital Fortaleza, tem 8,4 hectares e foi o terceiro mais visitado no Brasil no ano passado, com 1,4 milhão de visitantes.
Visitantes pagam uma taxa de turismo sustentável de R$ 41,50 à Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara, que dá direito à permanência por dez dias na vila.
“A partir da década de 70 começaram a surgir os primeiros visitantes na vila. Eram grupos que procuravam uma relação direta com a natureza. Na década de 90, é preciso compreender os incentivos governamentais para o desenvolvimento do turismo no Nordeste, principalmente em infraestruturas de acesso e diversas ações de marketing turístico”, explica o geógrafo e professor Davis de Paula, da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“Nos anos 2000 outras práticas começaram a surgir e a partir daí Jericoacoara se tornou um destino badalado, nacional e internacionalmente, e comercial”, acrescenta.
O professor lembra que a grande vitrine da cidade tem a ver com seu isolamento natural. “Ela está de frente para o mar, entre um gigante campo de dunas, ou seja, uma área com acessibilidade difícil. Essa acessibilidade já se torna um grande passeio.”
Em 2017 foi inaugurado o aeroporto de Jericoacoara, o que potencializou ainda mais o fluxo turístico da região.
“Para dar vazão a esse fluxo a vila conta com mais de 300 meios de hospedagem. Há uma infraestrutura secundária para dar uma capacidade de sustentação ao desenvolvimento dessa atividade econômica como restaurantes, bares e outros serviços”, diz o geógrafo.
A partir deste ano, serviços do parque serão administrados por um grupo privado, o Consórcio Dunas, que prevê investimentos em infraestrutura para os próximos 30 anos.
Mesmo com a mudança, o ICMBio continua sendo o órgão responsável pela administração, pesquisas científicas, fiscalização e proteção ambiental.
Transporte irregular e trânsito desordenado
A mensagem da personagem Filó estava bem direcionada ao problema mais comum flagrado pelos fiscais: o uso indevido de veículos motorizados, seja por pessoas que passeiam em locais proibidos ou empresas que usam veículos sem autorização, por exemplo.
Parece incomum que um órgão ambiental fiscalize carros, mas essa é uma preocupação prioritária: a prestação de qualquer serviço de transporte terrestre é monitorada.
Quem trabalha na região precisa fazer um cadastro, tanto na prefeitura quanto com o ICMBio.
É proibido circular sem a documentação ou, como já flagrado em algumas situações, “alugá-la” a outros prestadores de serviço.
Um estudo feito pelo órgão apontou que um dos principais problemas para os moradores e visitantes é o tráfego intenso e desordenado de veículos, que circulam pelas vias de terra ou areia da vila, causando poluição sonora e riscos aos pedestres.
Isso acontece porque a Vila de Jericoacoara, onde se concentram as atividades turísticas, é totalmente circundada pela área do parque. E grande parte das atividades oferecidas depende de carros.
Além de deixar mais claras as regras do que pode e o que não pode dentro do parque, como a proibição de alimentar ou importunar animais, esse credenciamento oficial tenta também limitar o acesso e saber quem circula na região.
No mês passado, a chefe do parque Kelly Ferreira Cottens assinou um termo que suspende o cadastro de novos motoristas por tempo indeterminado.
“O descumprimento das normas previstas na legislação ambiental, em especial no plano de manejo, coloca em risco os objetivos de criação das áreas protegidas podendo acarretar na perda da qualidade ambiental e, no caso de parques nacionais, gerar riscos às paisagens que atraem os visitantes”, disse Cottens, por e-mail, à BBC News Brasil.
O diretor do Conselho Empresarial de Jericoacoara, Marcelo Laurino, diz que o número elevado de multas não surpreende.
“Hoje o parque serve apenas como vias de acesso para entrar e sair da vila e as atividades do turismo, infelizmente, estão organizadas praticamente em sua totalidade em deslocamento de veículos. Esse quadro se agravou com a ampla oferta de passeios.”
Ele disse que essas atividades, que acabam chamando mais turistas, podem comprometer a região.
“Não entendemos que essa seja uma vocação de uma região em que as belezas e atrativos naturais fazem parte de uma biodiversidade, embora árida, bastante sensível e, em muitos aspectos, frágil.”
Há outras medidas que foram adotadas para tentar contornar o problema — um decreto publicado pela governo local no ano passado proibiu a circulação de veículos automotores do tipo UTV (uma mistura de carro e quadriciclo) na vila, nas proximidades de lagos, lagoas, dunas ou qualquer outra área de preservação permanente.
A decisão foi tomada depois de o Ministério Público do Ceará (MP-CE) ter cobrado a prefeitura por mais ações de combate ao fluxo crescente de veículos sendo flagrados em locais proibidos.
O problema com os veículos já era previsto no plano de manejo do parque.
“Para reverter essas pressões é necessário o estabelecimento de mecanismos de controle e ordenamento sobre o tráfego de veículos na área do parque e vizinhanças, avaliando os impactos e dando prioridade à conservação ambiental”, dizia o documento.
Para o biólogo e professor Hugo Fernandes, da Uece, o aumento de multas reflete mais fiscalização, pois os problemas sempre existiram.
“Temos o impacto advindos do uso de veículos 4×4 (tipo de veículo com mais capacidade para ser usado em estradas de terra ou pisos de baixa aderência, como areia), que causam erosão no solo, e atrapalham a nidificação, ou seja, os ninhos de várias espécies que dependem da vegetação de restinga. Temos também o problema da poluição sonora, causada pelos paredões de som puxados por esses veículos 4×4. Já foi um problema mais comum, mas ainda é um desafio a ser coibido, pois causa impacto na biodiversidade.”
Erosão acelerada das dunas
Uma das principais funções do Parque Nacional de Jericoacoara — ou seja, de existir uma estrutura de Estado para monitoramento da área —, é a proteção das dunas, além de espécies de plantas e aves de zonas costeiras. As dunas são consideradas o principal atrativo da região por especialistas.
A diminuição e até o “desaparecimento” dessas dunas tornou-se tema de preocupação, tanto para pesquisadores quanto para os próprios moradores e empresas que atuam no local.
As dunas se deslocam pela ação dos ventos, processo conhecido como transporte eólico, e podem desaparecer naturalmente. Mas especialistas veem impacto da atividade humana, que pode acelerar esse processo natural, seja pelo grande fluxo de pessoas ou pela ampliação não planejada da área urbana.
“O fluxo intenso de visitantes gera impactos ambientais significativos, especialmente no sistema dunar, que é bastante vulnerável. A presença constante de turistas e a pressão sobre as dunas podem resultar, por exemplo, na compactação do solo, aceleração do processo de erosão e degradação da vegetação nativa e alterações nos processos naturais de formação e movimentação dessas dunas”, diz Davis de Paula, da Uece.
O próprio ICMBio já divulgou diversos comunicados sobre o tema, em alerta aos turistas, vinculando o problema ao transporte irregular.
“O trânsito de veículo sobre as dunas provoca erosão, acelera a movimentação dos sedimentos e danifica a paisagem. Por isso é proibido”, disse o órgão, em uma publicação nas redes sociais.
“A paisagem modificada compromete a qualidade ambiental e afasta o turista que vem atraído pela beleza do parque.”
O órgão afirmou, em nota, que realiza estudos de monitoramento ambiental do campo de dunas móveis, em parceria com o Serviço Geológico Brasileiro e com a Universidade Federal do Ceará.
A pesquisadora Adely Silveira, também da Uece, estudou a evolução temporal da Duna do Pôr do Sol e identificou dois conjuntos de fatores responsáveis pela diminuição das dunas: os naturais, pelo encaminhamento das dunas em direção ao mar, e os de ordem antrópica (causados pela ação humana), como a expansão acelerada da urbanização da vila sobre os corredores de transporte eólicos, que alimentam as dunas.
Outro trabalho, uma tese de doutorado apresentada por Gustavo Amorim Studart Gurgel, identificou impacto nas dunas por fatores como urbanização não planejada na área, extração clandestina de areia das dunas, presença de animais nas dunas e locais de passagem dos areais, utilização da área para pasto de animais e trilhas para circulação de veículos.
“Em Jericoacoara você tem cerca de 40 trilhas [que levam à vila]. Você poderia organizar em uma única trilha. Há muitas situações em que tem que haver o diálogo entre os entes existentes para minimizar as ações da erosão na região”, afirma Gurgel.
“No meu entendimento, há uma falta de gestão da área como um todo, do turismo e da ampliação da zona urbana. Esse crescimento, obstrui a passagem dos sedimentos. Há muros de casas que já são aterradas pelos sedimentos, que vinham para alimentar as praias e dunas.”